Lygia Fagundes Telles é entrevistada.

A maior escritora viva da Atualidade è entrevistada
(Concedida a Revista Marie Clarie)

Diferente de muitas escritoras, ela nunca manteve um diário. A razão é simples: Lygia tem certeza de que acabaria inventando tudo. A realidade logo iria virar ficção, e ficção da melhor qualidade, como a que ela produz há tanto tempo. Pelo mesmo motivo, nunca considerou a possibilidade de escrever um livro de memórias ou uma autobiografia, sob o risco de reinventar a própria vida com sabor de romance. Lygia é reservada. Prefere expor suas emoções na voz dos personagens -no que eles dizem e, principalmente, no que não dizem, marca registrada de seu estilo. Porque, para ela, o final importa menos do que o desenrolar da história, na literatura e na vida real. ''Do início até o último porto, só interessa a viagem: às vezes tem tempestade, ondas enormes cobrem o barco; depois vem a calmaria e podemos desfrutar de um horizonte claro. Mas se durante essa travessia a gente prosseguir desejando o bom, o belo e o verdadeiro, então tudo terá valido a pena.'' 


Marie Claire: A senhora é vaidosa?
Lygia Fagundes : Telles Não me chame de senhora -''você'' é bem melhor! E sobre a vaidade, bom, eu faço o que posso [risos]. Certa vez eu disse para a Hilda [a amiga e escritora Hilda Hilst, que faleceu no início de 2004] que não queria mais pintar os cabelos, e ela respondeu: ''Você vai ficar triste''. Fiquei mesmo. Tenho minhas vaidades, sempre compro minhas roupetas quando viajo. Mas não acredito em plástica, não gosto da idéia de as coisas mudarem de lugar. Felizmente tenho pele boa, então vou me agüentando: quando eu me tornar um ser tão horrível a ponto de fazer as crianças fugirem de perto, bom, aí eu me retiro.


MC: Mas tem muita gente que não pensa assim. O que você acha das mulheres que são capazes de fazer qualquer coisa para continuar em cena?
LFT: :Há um limite para a vaidade. É triste ver algumas mulheres exagerando nas plásticas e no botox: tornam-se caricaturas de si mesmas. É, ao mesmo tempo, uma fuga e uma prisão. 


''Depois ela não lhe diria mais nada. Seria o primeiro segredo entre os dois, a primeira névoa baixando densa, mais densa, separando-os como um muro, embora caminhassem lado a lado.''
Lygia Fagundes Telles
MC: Como se o silicone fosse a versão moderna do espartilho...
Com Clarice Lispector
LFT: Há uma relação entre ambos: o espartilho servia para transformar uma cintura larga na chamada cinturinha de vespa. Reduzir a cintura até quase faltar o ar era a preocupação do século passado. E agora, esse oposto, aumentar os seios até fazê-los transbordar pelo decote feito bolas de futebol -o exagero, a apelação sexual sem limites... Acho tudo isso muito triste, é a verdadeira servidão humana. Outro dia, vi uma mulher com a pele enegrecida de tantas tatuagens! Ainda bem que esse tipo de delírio não é muito comum, um delírio que chega a ser agressivo porque é deformação. Os homens andam até meio assustados, preferindo a solidão a esse apelo.


MC: Por que isso está acontecendo?
LFT :Talvez porque ainda seja cedo -ou difícil- para a mulher entender e usufruir dessa liberdade que conquistou. Como disse o extraordinário Norberto Bobbio [pensador italiano, morto em 2004], a revolução da mulher foi a mais importante do século 20. É isso: as transformações foram muito profundas. Aquela rainha do lar antes escondida entrou nas fábricas, nos escritórios, nas universidades, começou a participar ativamente da cultura, das letras e das artes. Um espanto! Mas, com relação ao próprio corpo, às vezes essa mulher age como se estivesse dando uma espécie de troco ao homem -''agora eu também posso!''. Acho ótimo que a mulher agora tenha liberdade de escolher a vocação, o companheiro. Mas prefiro que o comportamento não seja o de arrogância e desafio. 


MC: Então tudo piorou?
LFT: Não, não estou lamentando a liberdade, o bem maior do ser humano e que a mulher conquistou nessa bela revolução. Acontece que as transformações foram rápidas demais e daí os exageros, o mau uso dessa liberdade, está me compreendendo? Na minha geração -a dos dinossauros [risos]- uma menina de 15 anos era mesmo uma menina. Hoje, uma garota dessa idade -algumas, é claro!- faz sexo, experimenta drogas e quer ser top model. Quando entrei na faculdade [em 1942, na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em São Paulo] não se pensava na mulher trabalhando em certas profissões. Tanto preconceito... Minha mãe vivia preocupada: ''Você já escreve, profissão de homem. E agora vai entrar para uma escola de homens? Tenho medo que você não se case'' [risos]. A sorte é que, de fato, eu era uma menina bem-comportada, isso ela reconhecia, vivia em volta dos livros. Depois inventei de fazer também o curso de esgrima e o de educação física [na Escola Superior de Educação Física], mas um dia ela confessou que gostava de pensar que eu também podia lutar com as espadas, como os mosqueteiros do romance.


MC: Você enfrentou muitos preconceitos?
Ao lado de Cecília Meirelles
LFT: Não posso me queixar. Casei duas vezes e o meu primeiro marido, Goffredo da Silva Telles Junior [jurista], que também foi meu professor na faculdade, sempre me incentivou muito. O tema do meu primeiro romance [''Ciranda de Pedra'', de 1954] era considerado muito forte para a época -havia uma personagem lésbica na história. Conversamos a respeito e ele me disse: ''Vá em frente!''. Mais tarde, já divorciada, voltei a me casar, com o Paulo Emilio Salles Gomes [crítico de cinema e ficcionista]. ''Senta aí e vá escrevendo'', ele costumava repetir quando me via sem ânimo. Meu filho, Goffredo, é cineasta, também gosta do que eu escrevo. E os meus amigos? Nenhum machismo.


''Eu serei musgo para você pisar, deite-se em mim, meu amor, chore em mim, e ficarei mais aveludada, mais tenra... Musgo, não é? Não sei por que agora quero ser planta, eu que fui mineral. Dura como pedra.''
Lygia Fagundes Telles

MC: Mas você não foi uma exceção? Ainda hoje, o quadro dos membros da Academia Brasileira de Letras [do qual Lygia faz parte desde 1987] tem apenas 4 mulheres e 36 homens...
LFT: Não podemos esquecer que até pouco tempo as mulheres que sabiam escrever só registravam aqueles devaneios em seus diários, e, ainda assim, às escondidas... A tal revolução é do século 20. Minha mãe era uma pianista de muito talento. E daí? Vieram os filhos, quatro. Ela não conseguiu assumir sua vocação.


Com o Amigo Carlos Drumond de Andrade
MC: Foi seu pai [o advogado Durval Fagundes] quem ajudou a publicar o primeiro livro de contos, ''Porão e Sobrado'', quando você ainda cursava o curso ginasial... 
LFT: Eu lia minhas histórias para ele, ouvia suas sugestões. Nós nos dávamos muito bem. Ele realmente me apoiava e me ajudou, pagando a edição desse livro. Infelizmente foi uma estréia prematura: poucos anos depois, o texto não resistiu à minha autocrítica. Nunca mais permiti a republicação desse e de outros textos daquela fase.


MC: Por quê?
LFT: Porque as pessoas já não lêem muito hoje em dia e é importante não desperdiçar a chance da leitura com livros que não valem a pena. Prefiro relançar o que pude fazer de melhor, é isso o que quero passar para os leitores.


MC: Você está nas livrarias há muitos anos. ''Ciranda de Pedra'' foi lançado em 1954 [hoje está na 25a edição], e o premiado ''As Meninas'' [na 35a edição] completou 30 anos em 2003. Você ganhou dinheiro como escritora? 
LFT: Ainda muito jovem eu já intuía que era melhor me garantir com um bom diploma -e acabei com dois!-, em vez de ficar contando com meus livros. Durante 30 anos, fui procuradora do Instituto de Previdência do Estado de São Paulo. Acontece que estou no Terceiro Mundo e aqui é assim mesmo, analfabetismo, miséria. Tenho meu apartamento, não tenho carro, uso os táxis da minha rua e os motoristas até me chamam de ''doutora'' [risos]. Não estou sozinha nessa luta, basta lembrar que tantos outros grandes escritores também lutavam -com a palavra e com a vida, um artigo de luxo. Carlos Drummond de Andrade, naquele seu modesto apartamento, e também a querida Clarice Lispector... Enfim, a palavra escrita não rende mesmo. Mas não perco a esperança, um escritor sem esperança é uma contradição. O meu querido pai, que também era advogado, arriscava no jogo, no baralho e na roleta. Era um jogador. Eu jogo na palavra. É uma luta dura, às vezes sem parceiros e sem testemunhas. Mas é a minha vocação. 


MC: E os leitores? Além do Brasil, seus contos e romances foram publicados em muitos outros países... 
LFT: É verdade. Mas quem nos conhece na Venezuela? No Chile? Estive em Cali, na Colômbia, participando de um encontro sobre literatura sul-americana. Fui convidada para falar da mulher na literatura brasileira e acabei informando ao público a língua que falamos no Brasil. 


''Por que não lhe disse antes? Apertá-lo demoradamente contra o meu peito e dizer. Não disse porque pensava que tinha pela frente a eternidade.''
Lygia Fagundes Telles

MC: Você se sente injustiçada ou desiludida com essa realidade?
LFT :Não se trata disso, é só uma constatação. Meu país é este. Aliás, tem uma frase do Renato Russo [cantor e compositor, 1960- 1996] da qual gosto muito: ele dizia que o povo brasileiro não é feliz. É alegre. Tudo é farra, carnaval, e os governantes infelizmente fecham os olhos para tantos problemas. No meu tempo de estudante, eu dizia que se o Brasil tivesse mais creches e escolas haveria menos hospitais e menos cadeias. A frase continua valendo, e agora completo: também haveria menos drogas e menos violência. Nesse contexto não é fácil viver como escritora. E veja que ainda procuro seduzir o leitor, dourar a pílula. Mas também não vou apelar, como muitos, fazendo auto-ajuda disfarçada de literatura! [risos]. 


MC: No ano passado, você publicou a primeira antologia (''Meus Contos Preferidos'') e agora prepara o lançamento do segundo volume, os ''Meus Contos Esquecidos''. Por que esquecidos?
LFT :Os contos da primeira antologia são realmente os meus preferidos. Não imaginei que poderia não ser assim com os leitores. Alguns ficaram bravos porque deixei de incluir certas histórias. ''A senhora não botou 'Herbarium', é o seu melhor conto'', me disse uma moça na feira. Em outra ocasião, uma senhora puxou conversa para dizer que tinha estranhado não encontrar ''A Mão no Ombro''. Tentei justificar, disse que o livro estava ficando muito grosso, mas não adiantou. Recebi cartas, uma muita simpática, de um senhor português reclamando a ausência de ''A Confissão de Leontina''. Isso começou a ficar tão freqüente que me aborreci. Afinal, eram as minhas preferências! Até que, uma noite, sonhei com o [escritor] Ricardo Ramos [filho de Graciliano], um grande amigo que morreu muito cedo. Tentei falar com ele mas, no sonho, ele só me olhava, quieto. Quando acordei, levei um susto: lembrei que o Ricardo adorava um conto chamado ''Eu Era Mudo e Só''. Para mim, foi o suficiente. Liguei para o meu editor no mesmo dia: quero um volume dos ''Meus Contos Esquecidos''.


MC: Acredita que a alma seja imortal? 
LFT Eu me considero uma espiritualista. Não sei como nem onde, mas acho que a alma permanece. Não posso acreditar que tudo o que somos simplesmente termine com o final da travessia. Sinto que, às vezes, os mortos vêm nos visitar. Acho que eles sentem saudades, como nós. 


''Tinha lá em casa uma estatueta com um anjo nu fervendo de desejo apesar do mármore, todo inclinado para a amada seminua, chegava a enlaçá-la. Mas as bocas estavam a um milímetro do beijo, um pouco mais que ele baixasse... A aflição que me dava aquelas bocas entreabertas, sem poder se juntar.''
Lygia Fagundes Telles


MC: Você acha que a literatura ajuda as pessoas?
LFT O leitor não sabe, mas ele me ajuda, é um cúmplice, no melhor sentido da palavra. Quando escrevo, eu estendo uma ponte e digo ''venha''. De certa forma, eu me desembrulho para estender essa ponte, e o leitor, do outro lado, também se esforça e se desembrulha para aceitar o meu convite. Certa vez, eu estava falando numa universidade, dizendo justamente isso, que através da palavra, quem sabe, eu conseguisse tocar num ponto importante, ajudar de alguma forma, ou talvez tudo isso fosse apenas loucura. No final da apresentação, um jovem se aproximou e me deu um bilhete que dizia: ''Não é loucura, não, Lygia. Em muitos momentos, seus contos aliviaram o meu desespero''. Então, não é sonho. A palavra consegue ajudar o meu próximo.


MC:  Sempre se referem a você como uma mulher elegante, discreta -como lidou com a competição na vida e na carreira?
Com Manoel Bandeira
LFT: As mulheres em geral são mais competitivas. É aquela história do harém: ''O sultão ficou mais vezes comigo''. Um inferno! Mas eu, desde mocinha, nunca fui competitiva. E não por virtude, mas por natureza. Lembro das aulas de esgrima da adolescência: usávamos uma túnica branca com uma calça tipo saiote, até o joelho, meias brancas, sapatos especiais, florete e máscara. No lado direito da túnica branca tinha um coração exposto, o alvo. O professor ordenava ''en guard'' [em guarda] e eu me punha em posição, mas não prestava atenção -vinha a adversária e acertava bem no meio do coração. ''Fagundes!'', gritava o professor, ''olha o coração exposto''. O outro sempre tinha mais malícia e, pronto, quando eu via, o meu coração exposto já era [risos]. Mas isso não me fez falta. Talvez eu tenha amargado um pouco, me decepcionei com algumas pessoas, é natural. Mas, como não entrei na luta, não me feri realmente. 


''Convidaram-me e sentei, a mesa pequena enfeixando copos e hálitos. Mas ela queria fazer perguntas. Uma antiga amizade? Ah. Fomos colegas? Não, nos conhecemos numa praia, onde? Por aí, numa praia. Aos poucos, o ciúme foi tomando forma e transbordando espesso como um licor azul-verde. Escorreu pelas nossas roupas, empapou a toalha da mesa, pingou gota a gota.''
Lygia Fagundes Telles
MC: Isso foi bom ou ruim?
LFT: Acho que não ser competitiva me ajudou muito, ajudou também a entender o meu sexo tão oprimido. Eu percebia a competição nelas, mas não devolvia. E quando você não retribui, não entra no jogo. Isso desarma o outro.


MC: A vida fica mais simples com a maturidade?
LFT :Acho que a vida se complica na velhice, quer dizer, na ''maturidade'': vamos atenuar as palavras! [risos]. Fica, sim, mais difícil, porque a gente vai perdendo as forças, embora a cabeça continue produtiva. O ser humano tem de fazer malabarismo o tempo todo, como um trapezista no circo: na juventude, a gente se atira, voa, não tem medo. Mas, na maturidade, sabemos que não tem rede lá embaixo e, se largar o trapézio, acabou, está perdido. Essa consciência amedronta e, ao mesmo tempo, estimula.


MC: Você não pensou em casar de novo?
LFT: Não quis outro casamento. Fiquei com meu ofício, minha vocação, meu filho, que amo muito, minhas netas lindas [Lucia, de 16 anos, e Margarida, de 20 anos] e meus amigos.


MC: Você sempre sondou a solidão, a morte, os desencontros e a paixão em seus livros.Desses temas, o que mais atiça a sua curiosidade? 
LFT: É justamente o mistério que ronda tudo isso que eu, de certa forma, persigo. Einstein, que foi um pensador da ciência, disse que por trás da matéria sempre há algo de inexplicável -e essa foi a conclusão de um homem que procurava explicações. Para mim, esse inexplicável é a alma: quando escrevo, busco desvendar parte desse mistério através dos bichos e das pessoas -mortos e vivos.


MC: Do que você sente medo?
LFT Da solidão, às vezes. Escrevi um miniconto [''Confissão'', no livro ''Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século''] que diz: ''- Fui me confessar ao mar.'' ''- O que ele disse?'' ''- Nada.'' Essa resposta do mar é propositadamente dúbia. Deixo ao leitor a escolha. Eu estava pensando na luta, em prosseguir nadando no meu belo estilo -eu nado bem. E o leitor? Bom, então, é isso: mergulhar a cabeça e respirar fundo, e mergulhar outra vez até cumprir a travessia.
  
Por: Silvana Tavano


Créditos : Marie Clarie

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